Buracos no diafragma

Chegaram à redacção algumas dúvidas relacionadas com esta notícia aqui. Então em Coimbra «fizeram uma descoberta inédita» e baptizaram uma hérnia? No diafragma? Primeiro, vamos lá ver o que é uma hérnia diafragmática. Uma hérnia  é a protusão de intestino (ou outro conteúdo visceral) por um buraco ou fraqueza anatómica. Pode ser pelo umbigo (ver aqui a hérnia umbilical), pode ser na virilha (ver aqui as hérnias inguinais), pode ser em qualquer zona onde o músculo deveria fechar e fechou de forma incompleta ou ineficaz. Ora, o diafragma é um músculo. Ele separa a cavidade abdominal da cavidade torácica. É a contracção do diafragma que puxa os pulmões para baixo, forçando a expansão dos alvéolos, e permitindo que o ar seja aspirado (ou melhor dizendo, inspirado).

[fonte: childrenshospital.org]

Quando existe uma parte do diafragma que fechou mal, existe uma entrada de conteúdo abdominal para dentro da cavidade torácica. Pode passar para o tórax praticamente tudo: estômago, baço, fígado, intestino delgado, cólon (vulgo intestino grosso) e  o respectivo apêndice. Trata-se de uma doença congénita, isto é, que nasce com a pessoa (por isso, se chama hérnia diafragmática congénita). O diagnóstico é feito in utero em cerca de 90% dos casos e pode ser feito desde a ecografia das 12 semanas (altura em que é suposto o diafragma estar completamente formado). Ainda assim, alguns podem manifestar-se apenas a seguir ao nascimento, com falta de ar, infecções respiratórias ou oclusão intestinal no recém-nascido. Só muito raramente a hérnia diafragmática se manifesta na criança maior e, muito menos, em adulto.

[fonte: coloradofetalcarecenter.org]

A hérnia diafragmática congénita aparece em 1 de cada 2000-5000 mascimentos. 80% aparecem do lado esquerdo, 20% à direita e muito raramente dos dois lados. Os rapazes são mais afectados que as meninas e os filhos de mães com baixo peso (para a sua altura) também têm maior risco. Isso poderia dar-nos pistas para a causa desta doença, mas ainda pouco se sabe porque é que este defeito do encerramento diafragma acontece. Como acontece na maioria das doenças congénitas, haverá uma componente de predisposição genética associada a uma exposição ambiental que despoleta a alteração anatómica. Infelizmente nem uns nem outros estão identificados.

O defeito no diafragma tem que ser corrigido, seja por via abdominal - laparoscópica ou via aberta (laparotómica) - seja por via torácica - toracoscópica ou toracotómica. É preciso encerrar o buraco (defeito herniário), nem que seja com uma prótese. Só assim o conteúdo abdominal deixa de se enfiar no tórax e o pulmão pode trabalhar melhor. Melhor, porque raramente se consegue um pulmão perfeito. Sabe-se hoje que associado à malformação do diafragma existe uma malformação dos próprio pulmão, que condiciona hipoplasia e hipertensão pulmonares. Aliás, controlar este dois factores antes e depois da cirurgia tem sido um dos focos de investigação do laboratório de ciências cirúrgicas do ICVS. O meu chefe (o Professor Jorge Correia-Pinto, que vocês já conheceram aqui) doutorou-se nesta área na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Quando veio para a Universidade do Minho, criou uma equipa que tem dado continuidade a esse trabalho.

Agora, vamos ao baptismo das hérnias. Na sua grande maioria, as hérnias diafragmáticas são postero-laterais (isto é, atrás e de lado). Apesar da primeira descrição ser de um Dr. McCauly em 1754, este tipo de hérnia foi amplamente estudada por um cirurgião chamado Bochdalek. Mesmo com o facto de muita da embriologia e opções cirúrgicas sugeridas por este professor de Anatomia checo estarem erradas, ainda hoje se chamam às hérnias postero-laterais (direitas ou esquerdas), hérnias de Bochdalek. Muito raramente, o defeito do diafragma é anterior (à frente do coração). Estas levam o nome de quem as descreveu a primeira vez - hérnias de Morgagni.

[fonte: courses.md.huji.ac.il]

Agora, voltando à notícia, o que os colegas de Coimbra trataram foi uma hérnia de Bochdalek direita ,onde estava inserida a transição do intestino delgado e cólon, e o respectivo apêndice iloceal. A presença do apêndice ileocecal nas hérnias de Bochdalek não é raro Raro é elas chegarem à idade adulta sem nunca terem sido detectadas. Segundo o artigo publicado pelo grupo, foram reportadas na literatura científica apenas 26 hérnias de Bochdalek no indivíduo adulto e nenhuma teria o apêndice-ileocecal dentro do tórax. A hérnia publicada pelos colegas será a primeira hérnia de Bochdalek direita com apêndice ileocecal torácico no adulto. Diagnosticar e saber resolver o problema à senhora é um mérito que lhes pertence, porque não deve ter sido nada fácil. Infelizmente. não será o suficiente para destronar Bochdalek e passar a chamar-lhe hérnia de Almeida-Reis.

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