Hiperactividade não é Má-Educação

O Henrique Raposo colocou um texto no seu blogue que está a causar polémica. Passando os olhos pela timeline do meu facebook, as pessoas que partilharam o texto concordando com ele, na sua maioria, não têm filhos ou têm-nos pequenos demais para conseguirem fazer asneiras. Os meus amigos com filhos maiores partilharam o mesmo texto discordando dele ou textos de outros blogues que discordam com o Henrique. Numa análise superficial, tendi a juntar-me aos que têm filhos. Quem os tem, sabe que, por mais que nos esforcemos, não é fácil manter a prol serena exactamente quando e onde queremos. Mais, por vezes, parece que as crias escolhem a pior altura para fazer fitas e birras. Mas o Henrique tem razão no que escreveu. Não em tudo, pelo que algumas das críticas que lhe foram dirigidas são justas. Perdoem-me se a falta de sono me fizer escapar alguma coisa, mas eis a análise que eu fiz do texto e da respectiva polémica.

Escreve o Henrique que o «café está inundado de crianças que não respeitam nada, nem os pardalitos e os pombos, e os pais "ai, desculpe, ele é hiperactivo"». Inundado é obviamente um exagero. Apesar de haver crianças mal educadas em muitos locais, incluindo cafés, duvido que elas sejam uma maioria. Mais, quando comparamos com tempos mais antigos (dos nossos pais ou dos nossos avós), devemos nos lembrar que, nesses tempos, as crianças não acompanhavam os pais ao café, ou quando iam, era muito raramente, em ocasiões muito especiais. Concordo com o Ricardo Martins Pereira (aka Arrumadinho) quando diz que as crianças de hoje frequentam meios diferentes dos de antigamente e numa sociedade mais individualista, onde somos menos tolerantes ao barulho da canalha alheia. Por outro lado, que há muitos pais a desculparem o mau comportamento da sua prol com a hiperactividade há. Ao contrário do Ricardo, tenho conhecido muitos casos. Alguns destruíram-me o consultório.

A hiperactividade é uma doença. Tem critérios de diagnóstico, tem tratamento e, felizmente, bom prognóstico. Esta entrevista ao Dr. Nuno Lobo Antunes é muito didáctica. Os pais de crianças verdadeiramente hiperactivas sofrem muito com a doença dos seus filhos. Genericamente, estes pais tentam corrigir ou disfarçar a doença dos filhos, não usá-la como desculpa para as suas asneiras. Os pais que desistem da educação dos seus filhos para se refugiarem num diagnóstico de hiperactividade muito provavelmente não têm filhos hiperactivos. Muitas vezes, fazem eles próprios o diagnóstico pelo que lêem nas revistas, na Internet ou em casos semelhantes dos vizinhos (eles próprios com diagnósticos forjados). Outras vezes, convencem o médico a tentar «ver se melhora com a medicação», mesmo sem indicação de um pediatra, de um pedopsiquiatra ou outro especialista habilitado. Estas crianças vão ficando com um rótulo de hiperactivas, mas são muito provavelmente simplesmente mal educadas ou, na versão light, demasiado agitadas. Podem até ter outros distúrbios do comportamento que resolveriam com terapêutica não farmacológica. Estas são extrapolações da minha experiência clínica (cirurgião pediátrico, não pedopsiquiatra). Valem pouco como evidência científica. Infelizmente, em Portugal, não existem números fiáveis, que nos permitam tirar conclusões seguras.

[fonte: femmeland.wordpress.com]

O Henrique diz ainda «este aumento massivo de crianças hiperactivas não resulta de uma epidemia repentina da doença mas da ausência de regras, da incapacidade que milhares e milhares de pais revelam na hora de impor uma educação moral aos filhos.» Se acreditasse que essas crianças eram efectivamente hiperactivas, não poderia concordar com o Henrique. A hiperactividade (a verdadeira) é de causa desconhecida, mas tudo indica que sejam mais os factores inatos (do próprio) do que os factores ambientais, entre eles a educação. Antes, e pelas razões que apresentei no parágrafo anterior, acredito que a maioria das crianças rotuladas de hiperactivas pelos próprios pais não são mais do que crianças mal educadas. Quero acreditar que a maioria dos diagnóstico feito pelos médicos são efectivamente bem feitos, mas (repito) os números não são fiáveis.

«Se um pai der uma palmada na mão de um filho num sítio público (digamos, durante uma birra num café ou supermercado), as pessoas à volta olham para o dito pai como se ele fosse um leproso.» Verdade verdadeira. Qual o pai que nunca sentiu o peso destes olhares condenatórios? «Neste ambiente, é mais fácil dar umas gotinhas de medicamento do que dar uma palmada, do que fazer cara feia, do que ralhar a sério, do que pôr de castigo.» Sim, eu próprio gostava de ter umas gotas milagrosas. Mas (atenção!) há mais alternativas para além das apresentadas. A minha profissão ensinou-me a falar com as crianças. A covencê-las pelo poder da palavra (contra o poder da palmada). Ainda assim, tenho aprendido muito (mesmo muito) mais com a parentalidade positiva, por culpa da Magda.

O Henrique finaliza com uma frase com a qual discordo. «A palavra moral deixa logo os pedagogos pós-moderninhos de mãos no ar, ai, ai, que não podemos confrontar as crianças com o mal, mas fiquem lá com as gotinhas que eu fico com o mal.» Eventualmente, seria um bom soundbyte (e verdadeiro), há uns anos atrás. Hoje, os pedagogos acreditam no bem e no mal. Esta dualidade é fundamental na aprendizagem das crianças. Há até um grupo de cientistas que provaram que a moralidade existe desde o nascimento e como ela vai sendo moldada durante o crescimento. O 60 minutes fez uma reportagem muito interessante sobre isso.


Contas feitas, o Henrique colocou (mais uma vez) o dedo na ferida. Muitos pais (onde eu próprio me incluo) reagiu, mas, vendo bem, não deixa de ter razão. Se olharmos para os graus de indisciplina nas escolas, teremos que concordar que os petizes hoje são mais insurrectos que os de antigamente. Seriam mais amestrados que educados? Provavelmente. De facto a forma de educar e/ou amestrar os pequenos difere de escola para escola, de região para região, depende do grau de ensino e do estrato socio-económico dos progenitores, entre muitas outros factores. Uma coisa é certa: cá em casa, os meus não são mais insurrectos do que eram os pais ou os avós deles. Em casa de quem lê este post, também não. Esta sensação de que o mal está em casa dos outros não é uma ilusão e justifica reacções mais acesas ao texto do Henrique.

Quem lê blogues e textos sobre educação não representa a população em geral. Quem lê blogues pertence a uma pequena parte da sociedade, mais literada e que se preocupa. Preocupa-se evidentemente com a educação que dá aos seus filhos. Eu preocupo-me. Eu não quero criar duas crianças panhonhas, sem vida, sem correrias, sem gritaria, sem joelhos esfolados. Quero isto tudo. Crescer é isto tudo.  Mas, ao mesmo tempo, quero ordem, educação e sentido moral, quando ela é necessária. O grande desafio de educar é este.

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